terça-feira, 13 de setembro de 2016

Não os deixei fazer de mim um macaco mordomo: sobre as vezes em que me senti humilhada fazendo casamentos

 
Com que imagem ilustrar esse texto? Já sei! Aquela Chico Buarque

Existe uma certa ideia de glamour, sonho e beleza que envolvem os casamentos. Não vou mentir: eu curto essa aura, eu gosto de contribuir pra ela mesmo quando defendo com todas as vísceras a ideia de que a celebração do casamento deve versar sobre a verdade e a autenticidade em detrimento das baboseiras e artificialidades que recheiam as revistas especializadas.
Mas tá lá, aquela aura... aquele sonho... Eu curto tascar um batom vermelho, um cordãozão brilhante, aquele perfume francês que tô pagando até hoje. Misturo tudo isso com meus inseparáveis looks em preto. Nos últimos tempos, inclusive, viciei no chapéu coco que comprei duma amiga e, se o terreno permitir, meto um salto alto. Tudo para tentar estar à altura do brilho do sonho daquelas pessoas pra quem estou trabalhando e seus convidados. E também estar à altura do que, apesar dos sentimentos em conflito, sinto em relação aos casamentos.

Mas o que eu gostaria de dizer é o seguinte: meia hora antes de eu aparecer na festa cheia de montações, com o rádio transmissor pendurado no ouvido, eu entro em desespero. Costumo passar dois dias montando o casamento, uma semana correndo pra baixo e pra cima resolvendo questões do cerimonial e da decor, cuidando do meu filho praticamente sozinha porque o pai trabalha em outro Estado, resolvendo questões de saúde, cuidando da casa, atendendo outros casais. Tudo isso emoldurado por pouquíssimas horas de sono.

Me desespero. Me olho no espelho e vejo uma pessoa completamente destruída que não vai conseguir dar conta da tarefa imensa que me foi confiada. Tento respirar. Ligo a pranchinha e começo a lavar os braços, o pescoço. Se tiver muita sorte, tomarei um banho mas, se for um dia como todos os outros, vou me resolvendo com duas toneladas de lencinhos umedecidos, grandes companheiros. Me visto e, no final disso tudo, de algum modo incompreensível, eu me sinto forte ou desajuizada o suficiente para enfrentar uma cerimônia e 5h de festa.

Pode parecer que o texto é sobre isso, sobre essa coisa gladiadora de matar 3 leões e ainda converter os romanos ao catolicismo, mas não é. Eu preciso é escrever sobre o fato de que são raras as pessoas que veem aquela mulher que estava carregando as cadeiras e mesmo aquela moça de preto fantasiada de segurança de shopping drag como uma pessoa.
Quando estou ali na frente da pia lavando os braços ou esfregando as axilas com lencinho Johnson.. naquele momento de glória eu sei muito bem que sou gente e sou gente pra caramba. Além de ser gente, eu sou a capitã daquele navio, dona do circo que se desenrola lá fora à minha ausência. Eu sei o que organizei, o que criei, a trajetória que vivi pra chegar até aquele momento bizarro de banho de gato. Sou aquela pessoa tentando juntar os cacos da dignidade estilhaçada pelo cansaço e pelas expectativas.

Talvez a confiança cega nessa chave ("sou uma pessoa!") me faça cair cada vez mais alto quando, inesperadamente, não sou tratada como tal em um evento.

Olha, eu espero que meus pais nunca leiam o que eu vou dizer porque eles ficariam muito frustrados de saber que, apesar de todos os esforços feitos por nós pra que fosse diferente, eu, como eles, me vejo presa na mesma rodinha de crenças brasileiras de que o trabalhador e o escravo são caras muito parecidos. Eles achavam que se eu estudasse, que seu eu tivesse um diploma pendurado na parede, que seu eu tivesse um título numa faculdade foda, que se eu fosse essa pessoa, não passaria pelas privações que eles sofreram por não terem nada disso. 

Mas bem... o Brasil ainda tem grandes dificuldades de entender que todos merecem respeito, seja o cara do trabalho braçal seja o cara do escritório. Para um número assustador de pessoas para quem já trabalhei, eu não sou realmente uma pessoa. Como acontecia com os escravos que estudei no mestrado, eu sou, para essas pessoas, uma ficção que me faz mobília. Um eletrodoméstico. 

Teve aquele episódio em que o casamento contava com cadeiras reservas. A ideia era que os convidados, na medida que sentissem necessidade de sentar, pegassem suas cadeiras self-service, mas aí apareceu esse senhor distinto e sua companheira e eles me disseram que eu precisava arranjar rápido uma cadeira porque Fulano não podia ficar em pé. Aquilo era um absurdo. Fulano era diretor de um grande hospital, sabia? Como você quer que ele fique pegando cadeiras?? E nesse mesmo casamento tinham umas madrinhas que chegaram horas antes e ficavam batendo palma gritando COMO É QUE É!! TERMINA LOGO DE PENDURAR ISSO! 

Foi inesquecível também aquele dia de chuva em Copacabana quando, com o trânsito todo parado, eu andei quilômetros até a casa da noiva que dizia vai ser um absurdo você desmarcar essa reunião!  E eu fui e chegando lá eu estava morrendo de fome, mas não conseguia dizer isso. Eu estava paralisada pelo medo de ser demitida, ou sei lá, de tomar um esporro pelo atraso e fiquei encharcada idiotamente, com fome. Ela não queria que parássemos pra comer. Eu estava com 4 meses de gravidez.

Ah! Aquela noite memorável quando a decoradora não apareceu e eu tive de montar tudo com uma equipe desconhecida + Arajany + os familiares que apareceram... naquela noite eu achei que terminaríamos comemorando abraçados com aquele aquele casal lindo por termos superado um grave problema, mas não, no final eu era a culpada de tudo porque não devia ter sido indelicada com a decoradora que, 40 minutos antes do inicio da festa, não sabia que cor de toalhas colocar. Pensei em colocar toalhas marrons. MAS AMIGA, O CASAMENTO É EM TONS PASTEIS! ACHO QUE VOCÊ PRECISA DAR UM JEITO E SE RESOLVER. Disse a contratada que, por conta dessa conversa no Whatsapp, ficou com medo de eu dar um escândalo e prejudicar o casamento. Aí ela não apareceu. Aí nós montamos e no final disseram que eu fui grosseira, violenta. Não ocorreu talvez que eu estivesse tentando trazer um casamento à vida em 3h e, nesse cenário extremo, como eu teria cabeça para ser fofa ou sociável? Nesse dia o caldo entornou mesmo e passei uma semana chorando sem entender what the porra eu tinha feito errado e porque me odiavam mais do que a profissional que faltou.

No dia seguinte, naquele mesmo lugar, uma moradora de um prédio próximo resolveu lavar sua varanda bem quando fazíamos a montagem e pôs-se a jogar agua suja em nós. Horas antes, outra moradora, revoltada por termos mudado os móveis da área gourmet do condomínio de lugar, exigiu. Exigiu. Que colocássemos mesas e cadeiras de volta ao seu lugar de origem porque ela queria bater parabéns no mêsversário (?) do filho.  

A quantidade de noivas e noivos que acreditam que fiz menos do que devia ter feito é incontável. As noivas e noivos que, ao longo do processo ou no dia, disseram de uma forma ou de outra que fariam muito melhor, que é só dar um jeitinho, que não é tão grave assim, que estou exagerando, que é um absurdo que eu não tenha feito isso, aquilo, aquilo outro... nossa, essas pessoas! Elas apareceram na minha vida em uma quantidade muito maior do que eu posso suportar. E eu não suportei. E eu sucumbi. Essas pessoas.... se elas sabem perfeitamente como fazer para que seus casamentos sejam foda, por que me contratam?? Por que me fazem embarcar num projeto dizendo que estamos juntos quando, na verdade, tudo o que querem é me teleguiar, questionar cada conselho, cada decisão, passar por cima, desfazer, esconder ideias, esconder budgets ou, simplesmente, não me pagar?

Por que fazem isso?? Por que eu preciso ser um cortador de grama ou um aspirador de pó? O que autoriza certas pessoas a me tratarem como qualquer coisa menos que gente ou, ainda, por que acreditam que não mereço respeito profissional? De onde muitos tiraram a ideia de que o que faço é ridiculamente mole?

A resposta vai dançar óbvia nos lábios dos meus amigos: Prill, você é uma Pollyana. Você precisa parar de achar que as pessoas vão respeitar seus sonhos, esforços e boa vontade em fazer um casamento legal. As pessoas respeitam quem cobra um milhão de dólares pra se divertir. As pessoas respeita quem as trata com indiferença ou assepsia. As pessoas passam por cima de você porque você acha que todo mundo é bonzinho. Você devia ficar só sentadinha mandando sua equipe fazer tudo ao invés de ficar colocando as mãos nas coisas. Devia parar de pedir opinião de noiva e fazer o que você sabe que está certo.  Em resumo, miga: você é uma otária. Tire todo o dinheiro desses idiotas, tire selfies e saia fora. Você devia virar as costas e ir embora quando essas coisas acontecessem! Mas..... como??? Me digam francamente: como posso ir embora?

Diariamente me coloco em situações extremamente delicadas. Meti na cabeça que queria fazer casamentos diferentes, em lugares diferentes, com abordagens diferentes.Casamentos que não buscam a perfeição  de um editorial fotográfico, mas que buscam virar história real por ser uma experiência real. Sonhei em pagar as contas fazendo isso. Trabalho para um público muito mais suscetível a merdas do que o público que curte casar no salão de festas que faz a mesmíssima festa todas as semanas e acho que essas pessoas podem e devem casar conforme as próprias regras, assim como eu fiz.
Sonhei alto demais?

Vejam que coisa bem idiota em se dizer: eu sonho em ter um trabalho sonho. Sonho ser respeitada pelo que faço, seja quando estou de mendiga carregando mesas, seja em cima do salto com o título da UFRJ pendurado no pescoço.

Não sei se algum dia vou conseguir isso. Desconfio que a base de tudo está em me relacionar somente com clientes que possuam as mesmas visões humanistas e estéticas que eu (ao menos parecidas). Com linguagem semelhante. Com diálogos que se encaixam. O foda é que não sei se seria possível ter isso todo o tempo. As contas não se pagam sozinhas! 
Talvez eu possa aceitar que nem todos os clientes vão se tornar meus amigos pessoais como a Arajany, ou a Fatinha, Maíra ou as Carolinas e outras mulheres e homens maravilhosos por quem tenho verdadeira adoração. Posso não ganhar todas. Mas não sei se posso aceitar me perceber dentro do "Histórias Cruzadas". 

Comecei esse texto achando que sabia onde eu queria chegar, mas o texto me levou pra qualquer lado que desconheço. Vou me apegar novamente àquele momento na frente da pia. Ali, tudo são possibilidades, tudo pode dar certo. Naquele momento eu sei quem eu sou. Eu sei o que fiz. Não preciso de confetes, homenagens, glamour nem brilho. Só preciso da minha farda preta. Só preciso fazer um casamento e garantir que cheguemos vivos do outro lado.  Mesmo sem saber como vou sobreviver a isso.
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